Ao analisarmos a história da humanidade é possível verificarmos um padrão de alteração de prioridades, que oscila entre duas dualidades contrapostas, como um pêndulo que vai de um lado para o outro. Ora o ser humano é colocado em segundo plano, dando-se ênfase em outros aspectos da cultura humana, ora o ser o humano volta a ser o ponto focal da preocupação da civilização.
A transição entre a Idade Média e o Renascentismo é um exemplo disso. A Idade Média foi uma época totalmente teocêntrica, quando o homem era colocado em segundo plano e visto essencialmente como um pecador, submetido às leis divinas. Aos poucos, o homem deixou de ser colocado de lado para ser o centro das obras artísticas (dando-se início à Era Renascentista), a qual deixou de olhar o ser humano como um pecador para valorizar suas virtudes, qualidades e belezas. O ser humano passou a ser atrelado, então, à ideia do Divino.
Da mesma forma, este fenômeno pode ser verificado na Revolução Industrial, período no qual se verificou um grande desenvolvimento tecnológico, garantiu o surgimento da indústria e consolidou o capitalismo, com a produção de mercadorias e a exploração dos produtos da natureza. Neste período verificou-se a transformação do processo produtivo e das relações de trabalho. Em linhas gerais, máquinas e equipamentos substituíram o homem, como força de trabalho.
A Revolução Industrial vem passando por várias fases, as quais se distinguem entre si conforme o aperfeiçoamento das tecnologias, desde o surgimento das máquinas até a utilização de robótica, telecomunicações e eletrônica, e a substituição das fontes de energia para as máquinas e equipamentos, que vieram evoluindo desde o vapor, passando pelo carvão e o petróleo. Esta evolução transformou não apenas a área de produção, mas as relações sociais e a relação entre o homem e a natureza, como também a relação de consumo.
A substituição do homem pela máquina acabou por desvalorizar o trabalho do homem, em favor de um aumento de produtividade e modificações do padrão de consumo. A Revolução Industrial trouxe, em síntese, uma alteração do modo como o homem se relaciona com o meio, valorizando a lucratividade em detrimento do ser humano e do meio ambiente.
Como dualidade oposta à Revolução Industrial, assim como ocorreu anteriormente na história da humanidade, vem surgimento nos dias atuais o Movimento “ESG”, que, em inglês, significa “Environment, Social and Governance”. Trata-se de um conjunto de práticas ambientais, sociais e de governança realizadas por empresas para a redução dos impactos ambientais de sua cadeia produtiva.
Dentro da sigla “ESG”, destacamos no presente artigo a letra “S”, que representa a forma de tratamento recomendada para as empresas no relacionamento com parceiros, clientes, colaboradores e consumidores. Trata-se de recomendação sobre vários temas sociais, como inclusão e diversidade, direitos humanos, engajamento dos trabalhadores, privacidade e proteção de dados, políticas de relação de trabalho, relação com a comunidade e treinamento da força de trabalho.
No Brasil, todos estes aspectos sociais estão consolidados no Decreto 9.571/2018, que, em linhas gerais, estabelece regras para o acompanhamento do cumprimento da responsabilidade social e de direitos humanos tanto pelo Estado, como pelas empresas. O instrumento normativo está dividido em 3 fases (visão preventiva, monitoramento e acompanhamento permanente, além de critérios de fiscalização, responsabilização e reparação).
O Decreto busca organizar todas as normas de proteção aos direitos humanos em um único instrumento, mencionando normas de proteção de grupos minoritários como, por exemplo: (i) criança e adolescente; (ii) etnias; (iii) LGBTI; (iv) mulheres; (v) pessoas com deficiência; etc. Tem como objetivo possibilitar que cada ser humano desfrute de seus direitos sem distinção de raça, sexo, idioma, religião, liberdade de opinião e expressão, incluindo política, origem social ou condição de nascimento, como forma de humanização.
Na esfera empresarial, humanização é fazer valer a função sócio-econômica da empresa, visando não apenas os lucros para os proprietários ou acionistas, mas também ações que contribuam para uma maior equidade na sociedade. É a equalização dos recursos financeiros e os recursos humanos.
É o respeito das características pessoais de cada indivíduo, potencializando a criatividade de cada um e valorizando sua capacidade de contribuir para a sociedade, sem limitações sexuais, étnicas, religiosas, políticas ou de condições sociais.
Todavia, ante o caráter voluntário de cumprimento do Decreto, perdeu-se a oportunidade de valorizar ainda mais os direitos humanos. A falta de obrigatoriedade pode ser interpretada por alguns como dispensa de cumprimento da norma, o que não é verdade, já que a falta de obrigatoriedade não autoriza as empresas a descumprir o que já está previsto em lei (já que o Decreto é apenas um reforçador de legislações pré-existentes).
Por outro lado, mesmo não sendo obrigatório, a sistematização da proteção dos direitos humanos dentro da empresa, por si só, é um benefício que permite a prevenção, cumprimento e monitoramento das normas que protegem os direitos humanos, evitando-se, assim, o aumento de passivos e atraindo investidores. O monitoramento das ações embasa estratégias empresariais mais seguras, e a divulgação do resultado desta sistematização torna as organizações mais transparentes (sólidas, melhor resiliência quanto a riscos ambientais sócio-econômicos).
O referido Decreto traz, ainda, a previsão de criação de um Selo “Direitos Humanos – Empresa”, o qual ainda não foi regulamentado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
É importante ressaltar, em relação a qualquer tipo de selo de reconhecimento de cumprimento de normas, que a sua simples obtenção, sem a existência de um sistema interno que garanta a continuidade do cumprimento das normas internas após a obtenção do referido selo, servirá apenas para ser usado como marketing e propaganda das empresas, afastando-se de seu objetivo inicial, que é a garantia de defesa dos direitos.
Por isso, é necessária a sistematização da proteção dos direitos humanos empresariais, para comprovar que, a longo prazo, a empresa vem cumprindo com suas obrigações sociais (e que não tomou tais medidas apenas temporariamente, como estratégia de marketing).
Apesar de estabelecer medidas de ordem prática a serem adotadas por entes públicos e empresas privadas, o Decreto não prevê penalidades em caso de descumprimento das diretrizes fixadas. A norma procura apenas incentivar a adoção por parte das empresas e a utilização por parte das vítimas, de medidas de reparação como:
a) compensações pecuniárias e não pecuniárias;
b) desculpas públicas;
c) restituição de direitos; e
d) garantias de não repetição;
Dentre tais penalidades, destaca-se o pedido de desculpas públicas, pelo qual, além de assumir o erro publicamente, informa as medidas efetivas que serão tomadas, que garantem a não repetição do mesmo erro.
Apesar de o erro em si manchar a curto prazo a reputação da imagem da empresa no mercado, assumi-lo, responsabilizar-se por ele e trazer medidas efetivas para que ele não se repita, a longo prazo, por ser visto com bons olhos pelos mercado e investidores.
Diante do caráter voluntário de cumprimento do Decreto, podemos concluir que a mudança cultural e a valorização dos diretos humanos ocorrerá quando houver o interesse da Alta Direção da empresa, passando a exigir novas competências de seus gestores. É o “Tone from de Top” e o exemplo da Alta Liderança que vai influenciar toda a cadeia produtiva da empresa. Para isso, há a necessidade da interação da liderança consciente dos impactos que causa na comunidade em que atua.
Por seu turno, o Compliance Trabalhista auxiliará a Governança da empresa na sistematização dos Direitos Humanos, por assim dizer. Terá como responsabilidade a definição, organização e monitoramento dos atos empresariais, elaborando políticas, regras e normas internas para deixar claro como os interesses dos stakeholders (parceiros) será regulado, alinhando-os com os interesses dos shareholders (proprietários da empresa), pensando no melhor para a organização.
Podemos concluir, portanto, que o desafio atual é a valorização das virtudes e qualidade do ser humano, associado às evoluções tecnológicas, como centro das relações empresariais, com a mesma importância do lucro, como uma Era Renascentista como nova fase da Revolução Industrial.
Entender esta mudança cultural trará um diferencial para as empresas. Com a evolução das tecnologias, massificação dos processos, produtos e serviços tornaram-se muito nivelados colocando os concorrentes em patamares de igualdade. Nesse contexto, o diferencial empresarial passou a ser o capital humano.
Assim, em que pese a falta de obrigatoriedade ou penalidade do Decreto, cumpri-lo voluntariamente, além de trazer benefícios para a sociedade, demonstrará a responsabilidade corporativa e fomentará a reputação da empresa no mercado, atraindo investidores e garantindo a perenidade e longevidade da empresa.